Agboulá!

Agboulá!

Agboulá! 1024 732 Marcos Passos

Balbino Daniel de Paula, 56 anos, é alagbá, título que lhe conferiu a liderança do Ilê Agboulá. Situado em Ponta de Areia, na Ilha de  Itaparica, o  terreiro sedia hoje à noite o auge de uma homenagem aos egunguns. É uma festa, de certa forma, para os que já morreram, assim como o Dia de Finados,  também comemorado hoje. Mas um culto de vida é a palavra que Balbino prefere para definir a prática religiosa onde atua como liderança.
Aliás, ouvi-lo falar é privilégio, pois o culto feito no Agboulá e em outros terreiros semelhantes, majoritariamente sediados em Itaparica, é pouco conhecido. No posto do alagbá, Balbino tem optado por usar a oralidade para informar, sem revelar os fundamentos do mistério. O objetivo é combater o preconceito e mostrar a  beleza de uma celebração que une entes sacralizados africanos, mas também os que são brasileiros, dentre os quais seus parentes biológicos. É a lição, segundo o alagbá, de que a morte não é o fim, mas uma etapa para o recomeço que é eterno e se renova unindo passado e presente como prática religiosa.
Como o senhor define o culto a egun?
É uma definição complexa, mas vou conceituá-la de forma simples. O culto a egungum é a preservação da existência coletiva. Costumo dizer que, enquanto Exu é o princípio da existência individual, o culto a egungun é o culto à ancestralidade, é reviver o princípio da existência coletiva, guardar os laços de parentesco, entre as famílias e  entre  os habitantes do  globo terrestre. E é isso que o egungun faz:  preserva  a harmonia. Tanto é que cada ancestral egungun representa  uma família para que ela possa se lembrar dele como princípio da existência. É a forma também para que o egungun acompanhe sua família, não permitindo que as adversidades ocorram no seio dela.
A palavra correta é egun ou egungun? 
A  forma, ao morrer, constitui-se em egun. Da passagem de egun para egungun há uma preparação ritualística que ocorre dentro do culto. É a potencialização e a purificação  da energia,   para que no tempo de, no mínimo  sete anos, o egun saia da fase inicial e passe à fase de egungun com toda a energia pronta para retornar à família.
Qual é a estrutura do templo?
Só homens podem ser iniciados. Hierarquicamente,  temos duas divisões para o sacerdócio: a primeira é a iniciação como amuinsã. Depois, vem o segundo ritual, que é a iniciação para ojé. As mulheres, no egbé, que é a comunidade do terreiro, têm papel fundamental em dirigir a cozinha para o preparo das oferendas . Aos homens não cabe intrometer-se nisso. As mulheres são responsáveis também por  entoar os cânticos. Os homens são responsáveis  pela direção formal dos terreiros. Os ojés têm a decisão, mas quem faz com que as decisões sejam executadas são as mulheres.
O senhor é alagbá.  É o líder?
Sim. Sou  Alagbá  Babá Mariwó, o responsável pela comunidade. No  terreiro de egungun são dois títulos para as lideranças principais:  alagbá, que é o líder daquela casa, e o alapini, responsável  por todas as casas e por responder pelo culto como um todo. Esse título é único. Não pode existir mais de um alapini.
O culto está sem alapini, nesse momento, por conta da morte de mestre Didi.
Sim.  Mestre Didi  faleceu em 6 de outubro do ano passado. Recentemente, fizemos o ritual após  um ano da sua morte e as casas já estão conversando para estabelecer quando  é que será a escolha  do novo alapini.
As casas que fazem o culto exclusivo a egungun ficam concentradas em Itaparica? O senhor é da  família Daniel de Paula, a base da resistência desse culto.
Realmente, a maioria das casas estão em Itaparica. A história da família Daniel de Paula é de muita resistência. Não só dentro da comunidade itaparicana, mas dentro do culto a egungun. Essa história começou com Manoel Antônio Daniel de Paula, que teve alguns filhos e, desses, os  mais importantes  como sacerdotes que foram iniciados são Pedro Daniel de Paula, que é pai de Balbino do Aganju (Obaraín),  Olegário Daniel de Paula e Eduardo Daniel de Paula. Esse  foi aquele que, em 1940,  foi preso, como diz uma  reportagem de  A TARDE,  em uma “varejada”  juntamente com sua esposa, vovó Margarida, por conta da repressão que existia não só ao candomblé, mas também ao culto a egungun.  Daí podemos perceber que a família Daniel de Paula tinha muita importância para o culto desde aquela época.  O terreiro que os irmãos Daniel de Paula passaram a gerir foi instituído por volta de 1925 no  local conhecido como Amoreiras, em Ponta de Areia. O primeiro terreiro de culto a egungun foi o Terreiro da Velha Cruz. Tinha  também o  terreiro do Mokambo, que era de Marcos,  o Velho. Depois de um certo tempo e por vários motivos elementos rituais e tradições desses terreiros vieram para as mãos da família Daniel de Paula.   É por isso que digo que a resistência desse culto se deu muito pela nossa família.
No ano passado, durante o Encontro de Nações do Candomblé, evento realizado pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da Ufba (Ceao), o senhor  fez uma palestra na qual disse que é preciso combater o preconceito contra o culto a egungun mesmo entre pessoas de candomblé.
É que as pessoas quando  falam de egun parecem estar falando de uma coisa, além de sobrenatural, ruim, que faz mal e é obsessiva. Isso acontece por conta dos fragmentos de informações que recebem de outras religiões, como o espiritismo, que fala muito do espírito obsessor. Todo espírito obsessor, em  tese, é um egun, mas é preciso entender outros aspectos.  Eu comecei, naquele momento, perguntando à plateia quem é que tinha parentes falecidos. Depois perguntei se as pessoas achavam que o pai ou a mãe falecido eram coisas ruins.  Percebi como elas ficaram mais receptivas. Portanto, o preconceito se dá muitas vezes pelo desconhecimento. Também devemos lembrar como alguns segmentos religiosos atacam o candomblé e, por extensão, o culto de egungun. Uma vez que ele não é tão aberto como o culto de orixás, as pessoas ficam ainda mais temerosas.   E há também  algumas nações de terreiros que não se preocupam muito em  cultuar seu ancestral. Eu entendo que devemos cultuar a nossa origem  Os indígenas cultuam a sua ancestralidade. Aliás,  todos os  grupos religiosos a  reverenciam. Os cristãos fazem assim com Jesus, que é um ancestral.  São  formas diferentes, mas a essência é a mesma.
O senhor costuma dizer que o culto de egungun não celebra a morte, mas sim a vida. Por quê?
Quando falece um membro da nossa comunidade, ele morre para uma vida e renasce para outra. Da mesma forma como os vários grupos religiosos entendem que, ao morrer se vai ao encontro do Senhor, por que o culto a egungun é diferente? Não é. Quando se morre está se nascendo para uma nova vida. A diferença é que essa nova vida não acontece de forma isolada. Ela é compartilhada com todos que ficam porque o egungun tem o papel fundamental de aconselhar, dirimir os conflitos entre os membros da família. Celebra a vida de uma forma compartilhada.
É por isso que o senhor é do culto de egungun e do que celebra orixás?
Eu sou axogum do Ilê Axé Ogum Alakayê (localizado em Salvador), onde sou responsável pelo abate dos animais que são oferecidos aos orixás. Fui iniciado no candomblé há 36 anos pelo babalorixá Moacir de Ogum. Veja que interessante:  nasci em Itaparica, mas,   ainda criança, vim morar em Salvador, pois minha mãe achava que era melhor para mim e meus dois irmãos.  Morei um bom tempo no Ilê Axé Opô Afonjá porque minha mãe era filha de santo de mãe Senhora, que dirigiu o Afonjá. O meu babalorixá Moacir  também era filho de santo de mãe Senhora. Quem o entregou a ela para ser cuidado foi Babá Agboulá.  Ele tinha uma devoção e um respeito muito grande a esse egungun. Eu fui escolhido para ser iniciado no culto de egungun exatamente por Babá Agboulá. Sou o único até hoje nessa condição. No culto de egungun, para ser iniciado como sacerdote, você tem que ser escolhido por um dos egunguns. Eu já tinha uma ligação com o Agboulá por ser da família Daniel de Paula. Aí vieram também os  laços religiosos por meio do meu pai de santo, Moacir. Portanto, eu cuido de aspectos do culto aos orixás, mas também, como alagbá, dos que partem dessa vida. Todos que morrem merecem cuidados, mesmo aqueles que não chegam a egunguns.
Quando as pessoas vão a um terreiro de egungun o que elas estão indo buscar?
Geralmente aquilo que não conseguiram encontrar em nenhum outro lugar. Nós  temos que propiciar o encontro dessa pessoa com isso que ela foi buscar. É esse o papel dos  sacerdotes e dos egunguns.
O senhor foi iniciado no culto de egungun  com quantos anos?
Eu fui iniciado aos 21 anos, porque os nossos mais velhos achavam que, para ser um sacerdote do culto, era preciso já ter constituído uma família com filhos. Eles diziam que só assim seríamos responsáveis o suficiente para estar no culto. Por isso, uma das minhas lutas hoje é para que os sacerdotes compreendam o seu verdadeiro papel. O primeiro cântico que entoamos no culto a egun reverencia o corpo de  sacerdotes.  Ele diz que nós somos espelhos e que temos a cabeça do pai do mistério. Isso significa que não basta você ser ojé se você não é um espelho para a sua comunidade. Não adianta  estar cultuando egungun se quando ele o está aconselhando para fazer o bem e você está fazendo justo o contrário do que ele disse.
O senhor faz parte de   família que preservou o  culto e tem parentes como egunguns.  Como é a  sensação de ver sacralizadas as  pessoas com quem  conviveu?
Incomensurável. Quando a gente é iniciado como  sacerdote do culto a egungun, o cotidiano faz com que,  muitas vezes, algo que é espetacular se torne uma coisa comum. Mas não é raro, em momentos de festividades, que a emoção tome conta de mim. Durante as festas,  presenciamos  ancestrais que vieram da África junto com os que são brasileiros, alguns deles, inclusive membros da nossa família biológica.  É início e meio de algo que não sei quando será o fim. De vez em quando, desce uma lágrima que a gente esconde (risos). Existe um ritual – nas festas maiores  – que celebra o aniversário desses ancestrais. A gente começa no dia anterior e passa a noite inteira   preparando o campo energético para recebê-los.  Isso, geralmente,  acontece por volta das 5h30 da madrugada . É quando Babá Agboulá, por exemplo,  aparece acompanhado do Babá Obáerin, que foi meu avô Eduardo.  Eu estou ali como alagbá e fico lembrando de momentos da história de resistência desses meus ancestrais para preservar o culto. São questões como essa que me preocupo em passar para as novas gerações. Nós estamos preservando a herança dos nossos mais velhos,  temos o dever de passar para os mais novos, mas da forma como nós recebemos.

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