ILÉ AGBOULA: LINHAGEM E DESCENDÊNCIA

ILÉ AGBOULA: LINHAGEM E DESCENDÊNCIA

ILÉ AGBOULA: LINHAGEM E DESCENDÊNCIA 1024 732 Marcos Passos

Vindo para o Brasil, então, os nagôs trouxeram para cá sua memória familiar e procuraram preservá-la. Assim, muitos ancestrais venerados na terra dos iorubás – e que representam linhagens, dinastias, protetores de regiões e cidades, com funções diferentes e específicas – são também e até hoje cultuados na Bahia. E assim como o culto dos orixás, o culto dos Egun na Bahia remonta pelo menos ao início do século XIX. Nessa época já havia em Salvador vários terreiros dedicados especificamente à invocação e à adoração dos ancestrais. Mas como a história “oficial” pouco ou nada se preocupou com negros e como só através da tradição oral, dos rituais e de invocações dos antepassados é que esses negros conhecem seu passado, a história dos terreiros praticamente não tem registro escrito. Entretanto, para o brasileiro a religião é um elemento de coesão comunitária e de expressão de todo um modo de ser. Então, a história oral dos negros baianos nos fala da introdução do culto dos Egun, das comunidade nas quais esse culto floresceu, comunidades essas que permanecem, por seus descendentes, coesas na tarefa de manter a continuidade de sua história. Vamos, então, a um pequeno histórico dos principais terreiros de Egun da Bahia: Terreiro de Vera Cruz – Localizado na Aldeia de Vera Cruz, a mais antiga freguesia da Ilha de Itaparica, na Bahia de Todos os Santos, esse terreiro foi fundado e comandado pelo africano Tio Serafim, que invocava e fazia aparecer o Egun de seu prório pai, o qual ainda é cultuado sob o nome de Baba Okulelê. Tio Serafim morreu com cerca de cem anos de idade, entre 1905 e 1910, tendo plantado os fundamentos de sua casa de culto ainda bem jovem, por volta de 1820. Terreiro do Mocambo – Localizado também em Itaparica, na fazenda chamada Mocambo, onde havia um grande número de escravos. Seu chefe foi o africano Marcos Pimentel (conhecido como Marcos-o-Velho) que, comprando sua própria alforria, viajou à África com seu filho, que lá foi iniciado nos segredos do culto. Voltando, mais tarde, para a Bahia, os dois trouxeram o assentamento de Babá Olukotun, considerado um dos ancestrais de todo o povo Nagô, e então fundaram o Terreiro de Tuntun, Ilê Olukotun. O Egun de Marcos-o-Velho é cultuado hoje sob o nome de Babá Soadê. Terreiro de Tuntun – Também situado na Ilha de Itaparica, no antigo reduto de africanos denominado Tuntun, esse terreiro teve como chefe o filho de Marcos-oVelho, Marcos Teodoro Pimentel (o Tio Marcos) que morreu já quase centenário por volta de 1935. Daí se deduzir que o Terreiro de Mocambo tenha sido fundado por volta de 1830 e este, o de Tuntun, que se originou, tenha começado a funcionar por volta de 1850. Terreiro de Encarnação – Encarnação é também uma localidade da Ilha de Itaparica. E o primeiro chefe da casa teria sido um filho de Tio Serafim (do fundador do terreiro Vera Cruz) chamado João-Dois-Metros. A importância desse terreiro é que lá é que teria sido invocado e aparecido pela primeira vez Babá Agboulá, um dos patriarcas dos iorubás. Terreiro do Corta Braço – Situado na Estrada das Boiadas, no atual bairro da Liberdade, em Salvador – fora, portanto da Ilha de Itaparica – esse terreiro tinha como um dos Ojé o legendário João-Boa-Fama e era chefiado pelo não menos legendário e notável Tio Opé. Tem-se notícias de várias outras casas que floresceram em Salvador, em Matatu, na Conceição da Praia, em Água de Meninos. E entre os Alagbá e Ojé de todos esses terreiros, certamente Tio Opé foi o mais destacado. Esse ilustre africano foi precisamente quem iniciou a Eduardo Daniel de Paula, filho de nagôs que, juntamente com seus familiares e descendentes de Tio Marcos e Tio Serafim, fundou o Ilê Agboulá, em Ponta de Areia, na Ilha de Itaparica, hoje no lugar denominado Bela Vista, onde se concentraram as pesquisas e os trabalhos do Projeto Egungun, sobre o qual falaremos adiante. O florescimento, então, de todos esses terreiros que enumeramos decorreu mais ou menos entre 1820 e 1935. Durante esse período, os fiéis, os sacerdotes, os chefes de culto, ou seja, as comunidades de cada um deles, se frequentavam, se relacionavam, trocando experiências, se constituindo como que uma irmandade, uma poderosa sociedade com características bem definidas. A partir desse interrelacionamento, ent]ao, foi que os antigos terreiros sucederam uns aos outros e todos eles vieram, de carta forma, a se condensar no Ilê Agboulá. Localizado em Ponta de Areia, na Ilha de Itaparica, o Ilê Agboulá é, hoje, o Brasil, um dos poucos lugares dedicados exclusivamente ao culto dos Egun. Sua fundação remonta ao primeiro quarto deste século, mas a comunidade que lhe deu origem e que lhe mantém os fundamentos está estabelecida na Ilha, como já vimos há cerca de duzentos anos. Essa comunidade se constitui de mais ou menos cem famílias que vivem da pesca, da coleta e venda de frutos e, hoje, de pequenos empregos propiciados pela indústria turística que se expande na Ilha de uns dez anos para cá. Mas apesar de toda a transformação que os novos tempos ocasionaram em Itaparica, a comunidade do Ilê Agboulá se mantém coesa. Tanto que, mesmo os que por qualquer contingência não moram mais na Ilha, para lá retornam sempre que há oportunidade, nas ocasiões de festas e obrigações, reatando os laços que os unem à sua ancestralidade. No Ilê Agboulá, no espaço do terreiro, que fica no Alto da Bela Vista residem apenas umas poucas famílias. Mas nas datas importantes do calendário litúrgico e nas obrigações, toda a comunidade – mesmo os que moram em Salvador e outros lugares – para lá acorre, permanecendo no terreiro dias e noites, reconstituindo assim os laços comunitários, recebendo as bençãos, os conselhos e as reprimendas dos Babá, estabelecendo enfim todo um processo de continuidade histórica. Daí, a grande importância do culto aos ancestrais: ele é um elemento de coesão grupal, de elo entre o passado e o presente, de fortalecimento de identidade cultural. Pois enquanto o culto dos Orixás permite ao grupo religar-se ao cosmos, ao universo, o culto dos Egun é também um “religar-se”, mas um “religar-se” através da ancestralidade, fortalecendo-se os laços sociais e comunitários. Assim, um religa o indivíduo e o grupo ao Universo; e o outro à sociedade. Então, como dizíamos, durante os ciclos litúrgicos toda a comunidade do Ilê Agboula se mobiliza. Famílias inteiras se deslocam para o terreiro. E alí, em pequenas casas construídas em torno dos lugares sagrados, se acomodam e se instalam enquanto duram as festas. As obrigações atravessam dias e noites. Os ritos cânticos, cores, indumentárias, ultrapassam o universo religioso, expressando um riquíssimo patrimônio cultural. Porque o Ilê Agboulá herdou dos antigos terreiros não só a liturgia, a doutrina e o conhecimento dos mistérios do culto, mas também os Egungun dos ancestrais africanos, aos quais se juntaram os dos Ojé falecidos no Brasil e que durante sua vida foram convenientemente iniciados nos mistérios do culto e suficientemente ilustres para serem hoje invocados e materializados como Babá, guardiães de uma cultura, inspiradores de modelos de comportamento, reavivadores da memória grupal, responsáveis pela continuidade histórica dos nagôs na Bahia.

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