JOÃOZINHO DA GOMÉIA
“O Rei do Candomblé”
Uma figura imperial da cultura nacional. Baiano, negro, homossexual e sacerdote de uma fé ancestral é o nosso homenageado na Coluna “Foi o Tempo”. Joãozinho da Goméia, sem a menor dúvida foi o grande responsável pela popularização do Candomblé no Brasil. Corajoso, tenaz, obstinado e abençoado. Ele driblou, enfrentou e se fez mais forte que o preconceito, o racismo, a perseguição religiosa e a ignorância. A sua excelência no ritual africano o fez famoso na sua época e lembrado até hoje. Foi um homem de mídia, um artista capaz e pessoa de personalidade forte. Infelizmente até agora não foi alvo de nenhuma produção cultural. Não virou filme, documentário , minisérie, tese acadêmica, à altura da sua grande contribuição à memória nacional. Então, da nossa parte fica aqui este singelo registro à magnitude e importância deste Babalorixá que me perdoem considerar “O Rei do Candomblé” no Brasil.
Foi pela cabeça que os orixás trouxeram o menino João Alves Torres Filho para o mundo do candomblé. Aos 10 anos, o garoto nascido em 1914, na cidade de Inhambupe, a 153 quilômetros de Salvador, já havia dado mostras de sua personalidade forte. Contra a vontade dos pais, deixou a casa da família para tentar a sorte na capital. Teve que se virar para sobreviver, mas contou com o apoio de uma senhora que morava na Liberdade, e que ele considerava sua madrinha. Foi essa senhora quem teve a idéia de levá-lo ao terreiro de Severiano Manuel de Abreu, conhecido como Jubiabá (há uma polêmica se ele teria sido, ou não, o inspirador do famoso personagem de Jorge Amado). Joãozinho sofria de fortes dores de cabeça, que não eram explicadas, nem curadas pelos médicos. Bastou que ele fosse “feito” no candomblé, para que as dores fossem embora. Elas seriam somente um aviso dos orixás, que cobravam a iniciação do menino.
Essa história é apenas uma das versões existentes sobre a iniciação religiosa de Joãozinho da Goméia. A fase inicial de sua vida, como várias outras, é coalhada de incertezas. À boca miúda, corria o boato de que Joãozinho não havia sido iniciado corretamente, dentro dos preceitos. No candomblé, isso é uma acusação muito séria. O etnólogo Roger Bastide, especialista no assunto, chegou a enquadrá-lo no rol dos babalorixás “clandestinos”, acusados de ter usurpado o título por ambição.
Mas Joãozinho da Goméia também tem seus defensores. Para o historiador Cristiano Ribeiro dos Santos, autor do artigo Candomblé, mídia e poder: a trajetória do babalorixá Joãozinho da Goméia, apresentado num simpósio de história no Rio de Janeiro, as críticas são fundadas no preconceito e mostram o incômodo causado pela ascensão meteórica de um pai-de-santo que transgredia as regras dos chamados grandes terreiros. “Eu duvido que, se ele fosse vivo, alguém tivesse coragem de questionar isso na frente dele”, observa, lembrando a personalidade forte, de quem não leva desaforo para casa, do babalorixá da Goméia. Na defesa de Joãozinho contra os boateiros, está também sua verdadeira legião de filhos e filhas-de-santo. Uma delas, “feita” por ele ainda em Salvador, é a ialorixá Maria José dos Santos, de 92 anos. Ela conta, em detalhes, a seguinte versão da iniciação do seu “pai”: “Ele tinha 19 anos, mas morava em Inhambupe, que a mãe dele era de lá. Essa senhora que morava aqui era madrinha dele. Aí, a mãe dele disse que, quando ele ia dormir sozinho com o irmão, ele via um homem. Ele gritava: ”Um homem cheio de pena! Minha mãe, um homem cheio de pena!”. Ele via um homem, que se vestia de pena e não deixava ele dormir. O irmão dele xingava, dizia que era alma de pena, que no interior ninguém acredita em nada. Aí ele caiu doente. Minha avó (de santo), a mãe dele, telefonou para a madrinha dele, dizendo que João via alma de pena e tava doente. Aí a madrinha dele levou ele para a casa do finado Jubiabá, porque ela era filha-de-santo do finado Jubiabá. Ele disse: ”Ô filha, esse menino tem negócio de candomblé, era melhor que vocês fizessem o santo dele”. Aí, a madrinha dele disse: ”Ô, pai, que santo tem esse menino?”. O finado Jubiabá disse: ”Ele é de Oxóssi”. Aí, fez o Oxóssi dele”.
Jovem Pai-de-Santo
Dona Maria José foi uma das primeiras filhas-de-santo do jovem Joãozinho da Goméia. Ele mal havia saído da adolescência quando fundou seu primeiro terreiro, num lugar chamado Ladeira de Pedra, no auge da repressão oficial aos terreiros de candomblé. “A polícia perseguia ele, mas tinha o doutor Matos, um delegado que protegia”, lembra dona Maria José. Mais tarde, Joãozinho conseguiu arrendar um terreno na Rua da Goméia, em São Caetano. Naquele local, que ficaria incorporado para sempre ao seu nome, ele trilhou os primeiros passos da fama. Ao mesmo tempo, o jovem pai-de-santo começava a formar sua numerosa prole, iniciando muitos “filhos”. Dona Maria José, por exemplo, fez parte de um “barco” de 19 pessoas iniciado por Joãozinho. É uma façanha lembrada até hoje, porque iniciar tanta gente de uma vez não é para qualquer um.
Por essas e outras características, Joãozinho da Goméia chamava a atenção, na Salvador da década de 1930. Ele não passou despercebido aos olhos de pesquisadores atentos da época, como o baiano Edison Carneiro e a americana Ruth Landes, que esteve em Salvador entre 1938 e 1939. No livro Cidade das mulheres, ela cita várias vezes o pai-de-santo de São Caetano, que ganhava prestígio rapidamente. Ao mesmo tempo, Joãozinho já despertava polêmica. Era um homem jovem, numa cultura religiosa dominada por velhas senhoras. Aos 21 anos, ele tinha seu próprio terreiro e havia formado várias filhas-de-santo, a maioria bem mais velha do que ele.
Essa ascensão precoce não era bem-vista no mundo do candomblé, onde a idade avançada é considerada um atributo importante para a escolha dos sacerdotes – e a própria Menininha do Gantois sofreu resistências por causa disso, quando assumiu a chefia do seu terreiro, aos 26 anos de idade. Além disso, Joãozinho batia candomblé da nação Angola, numa cidade em que predominava a cultura jeje-nagô. E ainda incorporava uma entidade com nítida influência indígena: o caboclo Pedra Preta.
Cabelos alisados a ferro: a chapinha e homossexual assumido.
É com o nome de “João da Pedra Preta” que o pai-de-santo da Goméia é citado em alguns relatos do início de sua vida. Era um mulato de traços bonitos, porte altivo, ótimo dançarino, que espi
chava os cabelos e não fazia nenhuma questão de esconder sua homossexualidade. Indiferente às críticas, Joãozinho da Goméia conservaria seu cabelo alisado por toda a vida. Da mesma forma, ele também manteve, ao longo dos anos, a capacidade de chamar a atenção e despertar polêmicas. Fascinante e sábio para uns, quase um impostor para outros, a verdade é que ninguém conseguia permanecer indiferente ao seu encanto.
De 1950 à 1971 o pai-de-santo mais famoso do país
Famoso, querido por seus “filhos”, consultado por gente importante, João da Goméia era, inegavelmente, um sucesso. A partir de 1950 até sua morte, em 1971, ele era o pai-de-santo mais conhecido do país, com fama comparável somente à de Menininha do Gantois. Mas, mesmo com todo esse reconhecimento, ele estava longe de ser uma unanimidade entre seus irmãos de religião, o chamado povo-de-santo. Ao contrário. Durante a vida inteira, Joãozinho incomodou muita gente, por suas posturas religiosas, seu comportamento transgressor e sua língua afiada – um temperamento nada surpreendente, aliás, num filho dos santos guerreiros Oxóssi e Iansã.
O escândalo de 1956
Um bom exemplo é o já citado Carnaval de 1956, em que ele se fantasiou da vedete Arlete. Repreendido publicamente pelas mães-de-santo baianas e pela Federação Umbandista do Rio de Janeiro, Joãozinho atribuiu a polêmica à dor-de-cotovelo. O assunto rendeu uma matéria destacada na revista O Cruzeiro, com o título “Joãozinho da Goméia no tribunal da Umbanda”. A reportagem inclui uma entrevista com o pai-de-santo, em que ele demonstra personalidade e presença de espírito. O autor das perguntas era o repórter Ubiratan Lemos:
“Você não acha que a sua fantasia de vedeta se choca com os regulamentos do candomblé?”, pergunta o repórter.
“De nenhuma maneira, meu amigo. Primeiro, porque antes de brincar eu pedi licença ao meu ”guia”. Segundo porque o fato de eu ter me fantasiado de mulher não implica em desrespeito ao meu culto, que é uma Suíça de democracia. Os orixás sabem que a gente é feito de carne e osso e toleram, superiormente, as inerências da nossa condição humana, desde que não abusemos do livre arbítrio”.
“Você está falando difícil, disse o repórter”.
E Joãozinho, sem demora, retrucou:
“Você está pensando que babalaô tem de ser analfabeto?”.
Joãozinho não deu o braço a torcer, os outros também não, e o assunto acabou nas mãos dos deuses, numa sessão de búzios promovida pelos chefes cariocas da umbanda. Os deuses encerraram a briga com uma saída salomônica: Joãozinho estava absolvido, desde que não repetisse a ousadia.
Desavenças públicas
As mães-de-santo mais famosas da Bahia não morriam de amores por Joãozinho da Goméia. À exceção, talvez, de Menininha do Gantois que mantinha com ele um relacionamento um pouco melhor, e a quem ele se referia com mais respeito. Quanto às outras ialorixás, Joãozinho demonstra um certo rancor, talvez por nunca ter sido tratado por elas como um igual, como um sacerdote importante. Numa entrevista concedida ao Pasquim, um ano antes de morrer, ele fala com desdém de mãe Senhora, poderosa matriarca do Ilê Axé Opô Afonjá. “Conheço Senhora, mas nunca tive maior contato com ela. Eu não sou simpático a ela. Ela é um tipo de mulher muito orgulhosa. Não é bem orgulho, é um pouco de ignorância”, dispara. Na mesma entrevista, um dos entrevistadores mostra uma “guia” para Joãozinho analisar se estava feita dentro da tradição. Ele diz que não, apontando para umas figas que, segundo ele, não deveriam estar ali. “Não está nada primitivo”, sentencia. Informado de que a guia havia sido elaborada por Olga do Alaketu, Joãozinho exclama: “A Olga? Então, ela está avacalhando!”.
Olga do Alaketu já era considerada, naquela época, uma das mais importantes ialorixás baianas. Hoje, ainda na ativa, ela permanece como uma remanescente de uma geração de grandes e poderosas mães-de-santo. Procurada pela reportagem para falar sobre Joãozinho da Goméia, esquivou-se gentilmente, alegando que não o conhecia bem. “Eu só posso falar do meu, minha filha. Se eu não sei nada dele, não posso falar”, disse ela.
Joãozinho estabeleceu-se definitivamente no Rio de Janeiro em 1946. Ele tinha, então, apenas 32 anos e já era um babalorixá bastante conhecido na Bahia. Tanto que sua festa de despedida foi um acontecimento comentadíssimo em Salvador. Ele deu uma festa no Teatro Jandaia, com danças típicas do candomblé. Porque, além de babalorixá, ele era um bailarino fantástico.
De acordo com o relato do próprio Joãozinho a um jornal carioca, a mudança para o Rio aconteceu quase por acaso. Ele foi “dar comida ao santo” na casa de uma de suas “filhas” em Duque de Caxias. “Depois de concluído o ritual, voltei para a Bahia mas, lá chegando, não tive sossego; os amigos insistiam para que eu voltasse e não tive outro remédio senão pegar um Ita no Norte e ficar em Caxias. Cheguei, gostei e fui ficando”, contou ele. Naquela época, a Baixada Fluminense já era um reduto dos variados tipos de culto afro-brasileiro do Rio de Janeiro.
Alguns relatos, porém, apontam que a mudança de Joãozinho para o Rio não foi tão fácil assim. “Há várias histórias míticas sobre isso. Parece que havia uma ordem do caboclo, que dizia que não era o momento, mas ele desafiou e foi assim mesmo para o Rio. Aí, deu tudo errado, parece que ele chegou a ser preso e obrigado a voltar. Até que, num determinado momento, o caboclo disse: agora é a hora. Ele veio e conseguiu se dar bem”, conta o historiador Cristiano Ribeiro dos Santos, que ouviu pessoas ligadas a Joãozinho no Rio, para construir seu artigo. Ele destaca que, em se tratando de uma figura tão marcante do candomblé, é difícil dissociar a vida real do pai-de-santo João das lendas que o cercam. “Várias histórias surgiram em torno de seu João da Goméia, e hoje é difícil distinguir o que é o personagem histórico e o que é o mito”, observa.
O fato é que Joãozinho conseguiu fundar a sua “Goméia do Rio”, em Duque de Caxias. Rapidamente, a beleza dos rituais, com orixás ricamente vestidos, e o carisma inegável de seu líder chamaram a atenção para aquele novo terreiro. “Desde sua chegada ao Rio de Janeiro, Joãozinho foi um verdadeiro promoter do candomblé. Suas atividades religiosas, como as festas de seus orixás, eram muito divulgadas na imprensa, que o promovia ao mesmo tempo em que fazia da Goméia um espaço de encontro não somente para as pessoas do povo-de-santo, mas para os diferentes segmentos sociais que passavam a ler e ter informações sobre o candomblé”.
Joãozinho da Goméia tornava-se famoso, começava a criar laços de amizade e cultivar clientes nas camadas mais altas da sociedade carioca. Isso, aliás, não era novidade para ele. Ainda na Bahia, quando ele se casou com uma mulher “velha, feia e rica”, na descrição de Edison Carneiro, teve como padrinho de casam
ento um oficial da Marinha, nada menos do que o capitão-dos-portos da Bahia. No Rio, essas relações com gente poderosa se ampliaram. “Conta-se que, nas festas importantes do terreiro, havia uma área nobre, onde ficavam os políticos da Baixada Fluminense, deputados, etc. Conta-se que a sogra de Juscelino (Kubitschek) era ligada a ele”, observa Cristiano Henrique. Esperto, o pai-de-santo não negava, nem confirmava, essas relações. Mais do que ninguém, ele sabia da importância do sigilo no seu trabalho. Além de políticos, pessoas do meio artístico freqüentavam o terreiro de Duque de Caxias. Mais uma vez, Joãozinho não costumava citar nomes, quando questionado sobre isso em entrevistas. Sua “filha” baiana Maria José dos Santos, porém, lembra que viu, na Goméia do Rio, celebridades do porte das divas Ângela Maria e Elza Soares. Essa ligação com o meio artístico era ainda mais forte porque o próprio Joãozinho, nas horas de folga das obrigações religiosas, era um artista. Ele se apresentava dançando, em shows folclóricos, no Cassino da Urca. No palco, ele mostrava aos leigos, fora do ambiente religioso, as danças sagradas dos orixás, em movimentos graciosos, fortes, ritmados, hipnóticos. Nesse ponto, não há divergências: todos os relatos concordam que João da Goméia era um excepcional bailarino. Baden Powell e Vinícius de Moraes dedicaram um samba ao caboclo dele: Pandeiro quando toca faz Pedra-Preta chegar. Viola quando toca faz Pedra-Preta sambar. O pandeiro diz: Pedra-Preta não samba aqui, não. A viola diz: Pedra-Preta não sai daqui, não. Pedra-Preta diz: Pandeiro tem que pandeirar. Pedra-Preta diz: Viola tem que violar. O galo no terreiro fora de hora cantou. Pandeiro foi-se embora e Pedra-Preta gritou: Olô pandeiro, Olô viola.
Joãozinho também mantinha uma boa relação com a imprensa. Ele parece ter sido o primeiro pai-de-santo a perceber o poder da comunicação e a tentar usá-lo para diminuir a discriminação contra o candomblé. Não é à toa que, no Carnaval de 1955, um ano antes de se travestir de Arlete, ele saiu com uma inacreditável fantasia de Associação Brasileira de Imprensa: uma mortalha estampada de letras, um cetro de microfone e uma maquete do prédio da ABI na cabeça! Um documento exemplar do prestígio de Joãozinho nos meios de comunicação é uma revista O Cruzeiro de 1967. Na capa colorida, ele aparece de torço na cabeça, ladeado pelas filhas-de-santo. Nas páginas internas, pouquíssimo texto, escrito com base nos livros clássicos de Nina Rodrigues, Edison Carneiro e Arthur Ramos. A novidade da matéria, que ocupou a maior parte de suas oito páginas, foram as fotos de pessoas vestidas de orixás. Vestidas por quem? Pelo pai-de-santo da Goméia, claro. Essa exibição dos deuses em público, fotografados e reproduzidos aos milhares nas bancas de revistas, dá bem a mostra da ousadia de Joãozinho na divulgação de sua religião. E das brigas que ele comprava com a ala mais conservadora do candomblé.
Não era por ele ser homossexual. O que mais chocava o povo-de-santo daquele tempo era mesmo a ousadia do babalorixá Joãozinho da Goméia. Ele desafiava a opinião pública ao dançar na noite em cabarés ou desfilar vestido de mulher, como fez no Carnaval de 1956..
Uma figura exuberante entra no baile do Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro. Plumas na cabeça, maquiagem no rosto, maiô justinho ao corpo, sapato de salto plataforma, pernas bem torneadas, envolvidas por uma meia-arrastão. O pai-de-santo Joãozinho da Goméia vestiu-se para brilhar no Carnaval de 1956, fantasiado da vedete Arlete. Os flashes dos fotógrafos pipocavam à sua passagem. Mas o sucesso da fantasia não foi unânime. Os umbandistas cariocas e as mães-de-santo mais tradicionais da Bahia ficaram indignados com a ousadia do babalorixá (pai-de-santo). Para eles, um sacerdote não podia se expor dessa forma, em pleno Carnaval. Joãozinho não ligou. “Serei eu, porventura, o primeiro Adão com o vestido da costela que apareceu no Rio de Janeiro?”, respondeu, irônico. Ele não deixava de fazer o que queria por medo de cara feia. Era amigo da polêmica, do espetáculo, dos holotofes. No terreiro, no teatro, na imprensa, Joãozinho da Goméia era uma estrela.
Mesmo os babalorixás (pais-de-santo) e ialorixás (mães-de-santo) que não simpatizavam com a sua figura, porém, têm hoje que reconhecer: Joãozinho da Goméia foi o grande responsável pela expansão do candomblé no Sudeste do país, a partir da década de 1950. Ele formou milhares de filhos-de-santo, que criaram novos terreiros em São Paulo e no Rio de Janeiro. Essas casas de candomblé apresentam-se orgulhosamente, ainda hoje, como fazendo parte do “modelo Goméia”, ou da “raiz Goméia”. A verdadeira Goméia, porém, não existe mais. Depois da morte de Joãozinho, em 1971, tanto o terreiro baiano, no bairro de São Caetano, como o terreiro fluminense, de Duque de Caxias, foram extintos. O caboclo Pedra Preta, a entidade mais famosa incorporada por Joãozinho da Goméia, ficou sem um sucessor à altura.
Milhares de fiéis lamentaram a morte do pai da Goméia, em meio à chuva de Verão
A morte de Joãozinho da Goméia foi tão espetacular quanto sua vida. Ele havia viajado a São Paulo a fim de fazer uma obrigação para uma filha-de-santo. Depois, resolveu dançar na festa de um terreiro amigo. No meio da dança sagrada, caiu desacordado no chão. Foi levado em estado grave para o pronto-socorro do Hospital das Clínicas paulista, mas, por falta de vagas, foi transferido para o Hospital da Beneficência Portuguesa. Três dias depois, voltava para o Hospital das Clínicas, em coma. “Na véspera de sua morte, quinta-feira, teve alguns instantes de consciência”, narra a reportagem de O Cruzeiro da época. “Foi informado de que, além de aneurise cardíaca, haviam localizado um tumor cerebral de difícil acesso, na região frontal. Consultado sobre a operação, concordou, e disse que seu desejo era que ”se cumprisse a vontade de Deus””.
Joãozinho da Goméia morreu durante a cirurgia. A notícia chocou seus milhares de filhos-de-santo e admiradores. Ninguém poderia prever essa morte repentina, embora alguns sinais da catástrofe já houvessem se manifestado para olhos atentos. Raul Lody e Vagner Gonçalves da Silva descrevem esses indícios, em seu artigo:
“Os primeiros sinais da debilidade física de Joãozinho começaram por volta de 1966, quando ele caiu no terreiro, por causa de um derrame cerebral. Talvez essa tenha sido uma manifestação inicial do tumor que o levaria à morte em 19 de março de 1971. Mas, a proximidade do fim teria sido anunciada também por meio de sinais do orun (espaço mítico) não identificados a tempo, segundo os membros da Goméia. Na última festa que Joãozinho realizou para Iansã, essa deusa relutou muito antes de se manifestar. Isso também aconteceu com o caboclo Pedra Preta, que sacudiu Joãozinho quatro vezes, mas não o incorporou, momentos antes do pai-de-santo viajar para São Paulo, onde veio a falecer. No quintal da Goméia, a árvore do tempo e o pé de jurema perderam suas folhas e a canjica servida para seu orixá repentinamente ficou azeda”.
Uma multidão foi despedir de Joãozinho, quando seu corpo chegou a Duque de Caxias. Segundo relatos e reportagens d
a época, seriam cerca de quatro mil pessoas acompanhando o cortejo de 6km do terreiro ao cemitério, a maioria vestida de branco. A mãe de Joãozinho, conhecida como vó Maria, teve que permanecer em São Paulo, porque teve uma crise nervosa ao saber do filho morto. Mas, nas ruas de Caixas, milhares de outros parentes derramavam suas lágrimas. Não eram parentes biológicos, mas parentes-de-santo, filhos e netos que amavam profundamente aquele homem singular que havia acabado de morrer. Várias filhas-de-santo incorporavam seus orixás e saíam girando, em transe. A tarde, que estava clara na saída do cortejo fúnebre, tornou-se cinzenta à medida que a multidão se aproximava do cemitério. No momento exato em que o caixão foi baixado à terra, algo extraordinário aconteceu. O repórter Francisco Vargas, d”O Cruzeiro, narrou a cena: “São 17 horas e 45 minutos. O caixão chegou à beira do túmulo, coberto por um pano verde. No momento em que cobrem o vidro da urna com a tampa de madeira, começa a chover, e multidão, olhando para cima, grita e aplaude. Em poucos minutos, o temporal alaga tudo e a água escorre forte por entre as sepulturas. Dezenas de mulheres se contorcem no meio da lama e os homens, aos soluços, entoam um cântico de despedida. Flores são jogadas para dentro do túmulo à medida que o caixão desce”. A tempestade súbita, na hora no enterro, foi registrada também por outros veículos de comunicação da época. A história também permanece contada, na tradição oral do candomblé. Para os adeptos, a chuva foi uma manifestação da poderosa Iansã, deusa dos raios e das tempestades, para marcar a despedida de seu querido filho Joãozinho.
Na Bahia, também houve uma forte comoção pela morte do pai-de-santo da Goméia. “Uma das maiores emoções que eu senti na minha vida foi a dessa notícia. Todo mundo ficou chocado. Eu era criança e me impressionei com a forma como minha avó recebeu a notícia”, lembra Raimundo Neves, neto de dona Mirinha do Portão, famosa mãe-de-santo de Lauro de Freitas, já falecida. Mãe Mirinha era filha-de-santo de Joãozinho. Por isso, seu terreiro de Portão chama-se, até hoje, “São Jorge Filho da Goméia”. Raimundo Neves, neto biológico e filho-de-santo de mãe Mirinha, orgulha-se de ser neto-de-santo de Joãozinho da Goméia. “Ele era uma figura humana extraordinária, singular”, resume. “Não tive a honra de conviver com meu avô (de santo), mas as poucas vezes que eu visitei o terreiro de Caxias com minha avó ficaram marcadas para sempre em minha memória”.
A descendência espiritual de Joãozinho da Goméia não é tão grande na Bahia como no Rio de Janeiro e São Paulo. No Sudeste, seu nome é uma verdadeira grife do candomblé, ostentada com orgulho. Mas, o terreiro original de Joãozinho, em Caxias, não existe mais. Depois de sua morte, houve uma disputa de poder. Uma menina de dez anos teria sido indicada como continuadora, mas houve divergências e ninguém conseguiu continuar o trabalho. Em Salvador, o terreiro original também não foi preservado. Na Rua da Goméia, o local onde Joãozinho ergueu sua roça hoje é ocupado por instalações da Embasa. Em vez das plantas dos orixás, o local é adornado por uma imensa caixa d´água, que se ergue como um monumento de concreto. Mas as lembranças do pai-de-santo que divulgou o nome da rua pelo mundo ainda está viva na cabeça dos moradores mais antigos. Pelo menos até agora, as histórias contadas pelas pessoas que o conheceram estão conseguindo perpetuar sua memória.
Fonte: Correio da Bahia e diversasSE ALGUÉM TIVER MAIS MATERIAL SOBRE O BABALORIXÁ JOÃOZINHO DA GOMÉIA E QUISER DOAR PARA ENRIQUECER ESTA HOMENAGEM, POR FAVOR NOS MANDE, VAMOS RESGATAR E MEMÓRIA DESTA PESSOA ESPETACULAR DA CULTURA BRASILEIRA QUE ELEVOU O CANDOMBLÉ
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